CriseLaranja

A Crise é Laranja: um ensaio integral sobre as causas do momento econômico-financeiro de 2009

José Vicente B. De Mello Cordeiro, PhD

15/03/2009 (revisão em 15/08/2010)

 

Muitas explicações vêm sendo dadas para a crise financeira mundial que explodiu no final de 2008. Com certeza você já ouviu várias delas. Em geral, é comum encontrarmos dois extremos: de um lado, o pessoal do mercado financeiro insiste nas causas ligadas aos sub-primes do mercado imobiliário americano e seu efeito dominó; e do outro, os anti-americanistas de plantão, argumentam que a crise é o primeiro sinal de que o capitalismo selvagem patrocinado pelo grande-satã está fazendo água. Eu arriscaria dizer que os membros dos dois extremos desta escala apresentam elevado grau de miopia. Eles estão, na melhor das hipóteses, focalizando apenas os efeitos ou causas imediatas, como é o caso dos financistas e economistas neoconservadores, ou então inventando causas ‘malignas’ ocultas, que não passam de justificativas para amparar seus pontos de vista, no caso dos chavistas (ou neo-PILA´s[1]) e radicais da pseudo-esquerda de ‘orientação’ iraniana. Resumindo, estes e outros argumentos que inundam a mídia tendem a focar apenas uma parte do problema. A abordagem integral, que por definição deve englobar as mais diversas áreas do conhecimento humano, da psicologia à economia, da sociologia à administração, tem por princípio fundamental o pressuposto que ninguém está totalmente errado, mas que para se estar ‘certo’ é preciso ‘enxergar’ os problemas e buscar suas causas sob uma perspectiva holárquica[2].

Sob o ponto de vista holárquico, a noosfera (ou seja, o nível constituído pelos seres-humanos) está no nível mais elevado da hierarquia da realidade formada por hólons e por isso transcende e inclui a natureza (muitos ecologistas radicais não gostam muito desta parte), as organizações e, logicamente, a economia. Assim, de uma perspectiva integral, por mais que governos possam implementar medidas político-econômicas bem-sucedidas para a preservação do meio-ambiente ou para evitar que a recessão se aprofunde (por que será que esse segundo assunto parece tão mais importante agora?), a verdadeira mudança ambiental ou a saúde econômica duradoura têm de começar dentro da consciência de cada ser humano. Caso isso não ocorra, é grande o risco de termos leis ambientais que não ‘pegam’ e ‘vôos de galinha’ nas economias americana, brasileira e mundial (esta parte nós conhecemos muito bem por aqui, não?). Assim, se quisermos entender as causas mais fundamentais desta crise, temos de mergulhar fundo na consciência humana.

A abordagem integral costuma se valer de um modelo de níveis de consciência ou ‘memes’, desenvolvido por Graves na década de 1960, com base nos trabalhos de Maslow e muitos outros psicólogos humanistas, e resgatado por Beck e Cowan na década de 1980. Na ocasião, os dois valeram-se desta abordagem ao participarem da elaboração do plano que pôs fim ao regime de apartheid na África do Sul, obtendo grande sucesso.  Uma importante característica da abordagem integral é seu caráter evolucionista. Segundo Ken Wilber, o maior pensador integral vivo, a consciência humana está ‘condenada’ a evoluir. Está evolução dar-se-ia tanto ao longo da vida de uma pessoa específica (uma criança tende a ter um nível de consciência mais elevado do que um bebê, assim como um jovem adulto deve ser mais consciente do que uma criança) como com o passar das gerações (os nascidos neste século podem atingir níveis mais elevados de consciência do que aqueles que nasceram na época da Revolução Industrial).  De acordo com a abordagem de Beck & Cowan e Wilber, os níveis de consciência[3] ou memes seriam:

  1. Bege: arcaico-instintivo / sensório-motor – o nível de consciência da sobrevivência básica, comum aos bebês saudáveis de hoje em dia até os 18 meses e aos adultos das sociedades humanas primitivas;
  2. Roxo: mágico-animístico / fantasmagórico-emocional – o nível de consciência das crianças entre 18 meses e 3 anos e das primeiras sociedades tribais organizadas;
  3. Vermelho: deuses de força / egocêntrico / rep mind – consciência das crianças de sociedade desenvolvidas entre 3 e 8 anos e do adulto médio dos reinos feudais – 20% dos adultos de hoje em dia ainda encontram-se neste estágio de consciência, a maioria em países muito atrasados do ponto de vista sócio-econômico;
  4. Azul: ordem mítica / sociocêntrico / conop – nível médio de consciência das crianças saudáveis de 9 anos em diante até os adolescentes de 16-17 anos e dos adultos médios dos EUA puritanos, da China confucionista e de grande parte dos regimes totalitários contemporâneos, incluindo as ditaduras militares da América Latina – atualmente, em torno de 40% dos adultos do mundo encontram-se neste estágio de consciência;
  5. Laranja: racionalista instrumental / individualista / formop – nível de consciência atingível a partir dos 15-16 anos em sociedades avançadas e característico dos adultos protagonistas do Iluminismo e dos trabalhadores do mercado financeiro de hoje em dia – aproximadamente 30% dos adultos de hoje em dia estão neste estágio;
  6. Verde: sensível / pluralista / formop to post-formal : alcançável a partir do início da idade adulta (21 anos) em sociedades avançadas, sendo presente em percentuais elevados da população adulta nos países nórdicos, Holanda e Japão, por exemplo – em termos globais, é o nível de consciência de 10% da população adulta;
  7. Amarelo: integrativo-sistêmico / post-formal: alcançável depois dos 30 anos em sociedades avançadas e presente em percentuais muito pequenos da população mundial (1% dos adultos vivos), mais freqüentemente nas sociedades mais desenvolvidas, sendo o primeiro nível de consciência no qual é possível identificar claramente a existência dos demais níveis de consciência e as realidades e necessidades de cada um;
  8. Turquesa: holárquico / post-formal: alcançável na meia-idade em sociedades avançadas e presente em percentuais ínfimos da população mundial (menos de 0,1%), sendo, de acordo com os autores, o ideal máximo de desenvolvimento da consciência humana.

 

Em virtude de seu caráter evolucionista, a abordagem integral explica que não podem ocorrer saltos de consciência no ser humano. Assim, para que alguém atinja o nível de consciência ‘verde’, terá de passar pelo ‘laranja’, por mais rápida que seja esta passagem. O mesmo vale para a passagem pelo nível ‘azul’ para aqueles que pretendem chegar ao nível ‘laranja’. Ocorre que esta mudança de nível de consciência só pode acontecer quando a pessoa se expõe a um ambiente que oferece novos tipos de problema, que demandam uma nova forma de pensar. Ao enfrentar e tentar resolver essa nova classe de problemas, a pessoa aprende com os erros cometidos e reconhece as limitações impostas pelo seu modo de pensar atual, começando aos poucos a mudar os “filtros” pelos quais ela capta á realidade.  Por fim, alcança-se um novo patamar de consciência, sem perder o anterior, que fica “adormecido”, podendo ser “despertado” se as demandas ambientais o requererem[4]. Por isso, a maioria dos adolescentes ‘verdes’ o é apenas ‘da boca para fora’. Por mais que eles defendam o Greenpeace, basta testá-los em seus valores aplicados às decisões do dia a dia e ficará claro que ‘ser verde’ é apenas mais uma forma de pertencer a um grupo e se identificar com ele, ou seja, ser ‘azul’.

De acordo com a abordagem integral, tanto os problemas psicológicos quanto os problemas sócio-econômicos mundiais podem ser explicados, em parte, pela dificuldade de se progredir na evolução. Ao reprimir a tendência a transcendência, se apegando ao nível atual de consciência (ou seja, recusando-se a evoluir mesmo quando todas as características ambientais o exigem), o ser humano começa a sofrer em termos psicológicos, adoecendo. Por isso é tão difícil encontrar um adulto de meia idade bem sucedido profissional e financeiramente e ainda totalmente orientado para objetivos materiais que não tenha de recorrer a calmantes ou anti-depressivos. Ele está se recusando a evoluir e a psique está cobrando o seu preço. Quando a maioria dos indivíduos em uma sociedade passa por este problema, a sociedade como um todo adoece. Esta ‘doença’, por sua vez, manifesta-se em todas as áreas da atuação humana: econômica, social, cultural, artística, etc..

O leitor deve ter percebido que finalmente chegamos ao ponto. A sociedade norte-americana está doente. Não porque ela é malvada, como querem os chavistas, e sim porque após um desenvolvimento fantasticamente rápido do nível de consciência médio da população entre o início do século XX e a período da Guerra Fria[5], ocorreu uma estagnação, motivada pelo apego a este nível, com suas conseqüentes distorções. Uma forma de explicar tanto a evolução quanto a estagnação seria tomarmos o conceito de ‘felicidade’ para as pessoas, referente à linha de desenvolvimento ‘necessidades ou fatores de felicidade’.  Sem dúvida, os alicerces do fantástico desenvolvimento da consciência americana nos três primeiros quartos do século XX teve sua origem na Declaração de Independência, que colocou no papel (no caso a Constituição) a principal missão da nova nação: proporcionar felicidade para os seus habitantes!

À época da independência americana, os níveis de consciência predominantes na população das treze colônias eram o vermelho e o azul, embora os principais responsáveis diretos pela declaração de independência estivessem entre os níveis verde e amarelo, segundo o próprio Wilber. De acordo com Maslow, Wilber e outros autores, para as pessoas cujo centro gravidade da consciência encontra-se entre as memes vermelha e azul, o conceito de felicidade tende a orbitar entre a satisfação das necessidades de alimentação e abrigo, quando desprovidas destas, até os ideais de patriotismo e pertença ao grupo, quando satisfeitas as necessidades mais básicas. A grande transição ocorrida a partir da produção em massa foi justamente a ascensão da grande parte da população ao nível de consciência representado pela meme laranja. Este fato deu-se principalmente por dois motivos: a) a maioria da população superou o estágio de privação de comida e abrigo, o que juntamente com o fato de o país ter triunfado nas duas grandes guerras e ter alcançado o status de principal potência econômica e militar fez com que os típicos anseios de felicidade da meme azul fossem alcançados e pudessem ser transcendidos; e b) O desenvolvimento científico e tecnológico e sua penetração em toda a sociedade laboral e no lazer, do programa espacial ao chão de fábrica, do cinema às corridas de automóveis, difundiu de forma inédita a racionalidade instrumental por toda a sociedade, ‘empurrando’ muita gente do ‘vermelho’ para o ‘azul ‘e do ‘azul’ para o ‘laranja’.

Para o homem cujo centro de gravidade da consciência é laranja, a felicidade está basicamente ligada ao uso das faculdades racionais para o alcance de seus objetivos individuais, aumentando a auto-estima. No caso ocidental, a racionalidade sempre teve uma conotação predominante econômica e, especificamente no caso americano, felicidade passou a ser sinônimo de sucesso financeiro: ter uma casa, ter um carro, pagar o estudo dos filhos, ter acesso ao que há de melhor em medicina em caso de doença e assim por diante. O problema da sociedade americana começou justamente com a exacerbação destas características, a partir da opção pela criação de uma sociedade totalmente fundamentada no consumo, ocorrida durante a década de 1970[6]. Com o tempo, criou-se no inconsciente coletivo da nação o conceito de que quanto mais dinheiro se tem, mais felicidade se consegue. Para agravar a situação, como este pressuposto foi incorporado ao american way of life e conseqüentemente ao sentimento de pertencer à nação dos norte-americanos, a distorção rompeu as fronteiras do ‘laranja’ rumo à consciência ‘sócio-cêntrica’ das pessoas no nível ‘azul’ de consciência, especialmente os adolescentes, fazendo estragos ainda maiores. 

Como o consumo é o principal elemento tangível a simbolizar a riqueza econômica e a alimentar a auto-estima “laranja”, já não basta ter um carro, ou mesmo um para cada membro da família. Era preciso ter um para cada ocasião. O mesmo vale para os móveis e eletrodomésticos: para que fazer mudança? Troca-se de casa (para uma maior, é lógico!) e junto troca-se toda a mobília e máquinas domésticas. Financia-se tudo a perder de vista e antes de acabar de pagar, muda-se de novo e troca-se tudo de novo, afinal, ‘eu preciso ser feliz’! Até mesmo com a alimentação a lógica do racionalismo econômico dominava: para que comer só um sanduíche de US$ 2.00, se dois custam US$ 3.00? Em plena década de 1990, o incentivo ao consumo no EUA motivava taxas de crescimento dignas de países em desenvolvimento, enquanto parte da Europa e o Japão amargavam estagnações. Aí veio a crise das ‘ponto com’, os atentados terroristas de 2001, a explosão dos gastos governamentais e o fim da poupança. Mas mesmo assim, era importante que o PIB continuasse crescendo e a única forma disso acontecer era contrair mais dívidas. Até chegar a um ponto no qual o cara vai ao banco refinanciar o seu imóvel quitado para continuar a gastança. Na iminência da crise, o pronunciamento do Presidente George W. Bush pedindo que os americanos fossem as compras para evitar a crise era um indicativo claro de que, em virtude da dose excessiva, o remédio tornara-se veneno.

Resumindo, levando-se em conta o nível de bem estar econômico, social e psicológico atingido pela sociedade americana, era normal que os seus cidadãos começassem a se desvincular dos objetivos individuais econômicos e passassem a vislumbrar a felicidade como algo mais sistêmico, que contemplasse a preservação da vida na terra e o cuidado com os mais necessitados, típicos da meme verde. Foi basicamente isso que começou a ocorrer na Escandinávia, na Holanda, no Japão, na França e em outras nações da Europa, à medida que grande parte da população destes países integrou suas racionalidades econômicas e começou a transcendê-la. Mas não nos EUA, onde a maioria permaneceu apegada aos modus-operandi ‘azul’ e ‘laranja’, mesmo quando tudo ao redor favorecia um avanço para o ‘verde’. O resto, vocês já sabem e, em breve, vai ser história.

 

[1] Perfeito idiota latino-americano. Termo criado por Plinio Apuleyo Mendoza, Carlos Alberto Montaner e Álvaro Vargas Llosa em seu livro “Manual do Perfeito Idiota Latino-americano”.

[2] Preferi o termo ‘holárquico’ ao termo ‘holístico’. Na verdade, ambos têm origem em ‘hólon’, que é uma parte de um todo que ao mesmo tempo é um todo para outras partes. Para a abordagem integral a realidade é uma holarquia, ou uma hierarquia formada por hólons, na qual cada nível transcende e inclui o nível inferior. Assim, as moléculas transcendem e incluem os átomos, as células transcendem e incluem as moléculas e assim por diante. O termo ‘holístico’ vem sendo muito usado recentemente, porém em total desacordo com seu significado original, passando a significar, na maioria das vezes, ‘anti-hierárquico’ e ‘anárquico’.

[3] De acordo com a abordagem integral, um indivíduo possui diversas ‘linhas’ de desenvolvimento, como ‘moral’, ‘necessidades e fatores de felicidade’, ‘cognitiva’, ‘estética’, etc… Ele pode encontrar-se em níveis distintos em cada uma delas, embora haja uma forte tendência de interdependência entre estas.

[4] É importante frisar que este desenvolvimento não é linear, com a consciência ‘subindo degraus discretos’. Uma mesma pessoa tende a pensar e agir com diferentes níveis de consciência em momentos distintos, mas faz sentido dizer que o ‘centro de gravidade’ da sua consciência encontra-se em determinada ‘meme’, que tende a ser predominante em sua mente em determinada época de sua vida.

[5] O aumento do nível médio de consciência da população americana a partir da popularização da produção em massa até a década de 1970 foi, sem sombra de dúvida, o de maior velocidade e proporções na história da humanidade. 

[6] Para saber mais sobre a criação da sociedade de consumo, veja o filme “The Story of Stuff” em http://www.storyofstuff.com/

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Cordeiro. José Vicente B. M. 2015. A Crise é Laranja. Integral Works IW16003. Disponível em: https://integralworks.com.br/noticias/iw15001. 

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José Vicente B. De Mello Cordeiro, PhD.

Founding Partner at Integral Works / Executive Consultant / Professor of Leadership & Strategy / Speaker / Coach & Mentor

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