O conceito de “iluminação”, embora muito difundido em meio às tradições orientais e próximo aos praticantes ocidentais de suas disciplinas, como o yoga, o tai chi e as artes marciais, ainda é um grande desconhecido da maioria das pessoas que vivem no ocidente. Este artigo pretende jogar luz (“shed light”, na língua de Shakespeare) neste conceito e ajudar aos buscadores espirituais e líderes integrais em sua jornada rumo à libertação. Como em toda abordagem ontológica, pretendo apresentar diferentes categorias de iluminação, ou seja, mostrar que ao contrário do que os idealistas, a esmagadora maioria dos mestres das tradições orientais e todos aqueles que incorrem no chamado “myth of the given” defendem, não existe apenas um estado liberto. Como utilizo uma abordagem integral e evolucionista, mostrarei que as categorias decorrem diretamente do processo de desenvolvimento que a humanidade e o universo experimentam desde o Big Bang.
Libertação. Acabo de mencionar no parágrafo acima um dos principais termos associados à iluminação. Sim, iluminação está diretamente relacionada à libertação. Mas libertação de que? Se visitarmos as literaturas das tradições budista e hindu, veremos que ambas apontam para um estado máximo de liberdade, no qual se está livre de todo e qualquer sofrimento existencial. Sim, não se está livre de cair, quebrar a perna e sofrer com a dor, mas se está livre de sofrer por que se está sofrendo com a dor. Deu para entender? O sofrimento existencial transcende o sofrimento pela dor com a perna quebrada. Ele está ligado ao sofrimento ligado aos pensamentos sobre o que pode acontecer se eu não me recuperar, por exemplo. Vou conseguir voltar a trabalhar em 15 dias? Entrarei em licença pelo INSS e ficarei ganhando menos? Terei dinheiro para pagar as contas? Conseguirei correr como corria antes? Todas estas perguntas passam pela cabeça da pessoa não-iluminada o tempo todo, fazendo-a sofrer muito mais com seus próprios pensamentos do que com a dor. O iluminado, fundamentalmente sofre apenas com a dor física da perna quebrada. E utiliza toda a força de sua mente para conseguir a melhor recuperação possível.
Pedro Kupfer, professor de Yoga em Floripa, certa vez mencionou que quando falou sobre a busca da iluminação em uma prática para seus alunos, um deles, um novato recém- chegado, disse que não estava interessado nisso. A resposta do aluno teria sido: “Eu não quero me iluminar. Eu só quero ser feliz”. A resposta de Pedro ao seu aluno fornece uma das melhores e mais acessíveis definições sobre o estado de iluminação: “Então o que você procura é exatamente a iluminação, pois a única forma de alcançarmos a felicidade de forma incondicional, ou seja, sem precisar de que coisas que não dependem de nós aconteçam de forma favorável, é se iluminando”. Sim, estamos falando exatamente da “perfeita alegria” de São Francisco de Assis. A alegria incondicional. A alegria que São Francisco manteria mesmo quando todas as portas se fechassem para ele e seus confrades em meio a uma tempestade de neve. A alegria “de quem está imerso em Deus”. Portanto, um pressuposto fundamental deste texto é que a Iluminação é algo altamente desejável, a única forma de alcançar a plena felicidade. Desculpem-me, seria a única se só houvesse um tipo de iluminação. Outro pressuposto deste artigo é que existem mais de uma categoria de iluminação, caso contrário eu não o haveria escrito.
Se ao olhar externo leigo, todo ser iluminado apresente as características pontuadas no parágrafo acima, internamente o significado da iluminação para diferentes pessoas em diferentes épocas pode ser bastante diferente. Colocando a questão nos quatro quadrantes da abordagem integral da Figura 1, se falamos da iluminação do indivíduo, falamos dos dois quadrantes superiores. O que estaremos avaliando são as diferentes categorias de iluminação sob o ponto de vista da Zona #2, ou seja, o lado de fora do quadrante superior esquerdo (subjetivo), o que equivale a uma abordagem estruturalista. O olhar externo típico da terceira pessoa, está nas Zonas #5 e #6, no quadrante superior direito (objetivo), enquanto o olhar interno típico das grandes tradições espirituais está na Zona #1 do quadrante subjetivo, correspondendo a uma abordagem fenomenológica. Portanto, para começar, é importante também deixar claro que a perspectiva deste artigo é estruturalista, mas acima de tudo, integral, ou seja, não se tem a ambição de invalidar as perspectivas das Zonas #5, #6 ou #2, mas complementá-las.
Figura 1: Os quatro quadrantes da Abordagem Integral de Ken Wilber.
Se estamos adotando uma abordagem integral e estruturalista, devemos definir Deus ou o Espírito de acordo com estas abordagens. Sob o ponto de vista da Pós-Metafísica Integral de Ken Wilber, que resgata conceitos de Kant e Hegel, Deus é ao mesmo tempo transcendente e imanente. O aspecto transcendente de Deus está fora do tempo e do espaço. É, sempre foi e sempre será. Sob o nosso ponto de vista, imerso na realidade do tempo e do espaço, o Deus transcendente é estático. Simplesmente, É! E é algo “fora” de nós, separado. Por outro lado, o aspecto imanente de Deus está em todas as coisas presentes no tempo e no espaço. O Deus imanente está em construção desde o Big Bang. Sob este ponto de vista, a evolução do Cosmos é simplesmente um processo de auto reconhecimento do Espírito. O Espírito conhecendo a si mesmo. Ou, de forma mais radical, nós somos Deus, e Ele é um processo, algo em construção, fruto de uma brincadeira divina que começou a bilhões de anos! O Deus imanente é um Deus Estruturalista e Evolucionista!
Para definir os termos que utilizarei na dimensão imanente, é necessário apresentar a Dinâmica da Espiral aos que ainda não a conhecem. Esse modelo, desenvolvido por Don Beck e Chris Cowan, pretende simplificar a evolução biopsicossocial dos seres humanos desde a pré-história até a atualidade e desde o berço até a iluminação. Assim, trata-se de uma hierarquia de níveis pelos quais os seres humanos evoluem ao longo de suas vidas e ao longo de história de sua raça, sempre que as condições para esta evolução são favoráveis. Abaixo apresento os oito principais níveis de consciência da SD, denotados por cores, com algumas de suas principais características:
- Bege: arcaico-instintivo – o nível de consciência da sobrevivência básica, de cunho físico, comum aos bebês saudáveis de hoje em dia até aproximadamente 18 meses e aos adultos das sociedades humanas primitivas, os homens das cavernas;
- Roxo: mágico-animista – o nível de consciência da sobrevivência emocional, predominante nas crianças de 18 meses a 5 anos e nas primeiras sociedades tribais organizadas;
- Vermelho: mágico-egocêntrico – surge nas crianças a partir dos 3 anos e pode se tornar dominante antes dos 6 anos, sendo o nível de consciência do adulto médio dos reinos feudais – 20% dos adultos de hoje em dia ainda se encontram neste estágio de consciência, a maioria em países atrasados do ponto de vista socioeconômico;
- Azul: mítico-etnocêntrico (âmbar no modelo de Ken Wilber) – nível alcançável pelas crianças saudáveis de 7 anos em diante, podendo ser dominante a partir da pré- adolescência e adolescência, sendo o nível de consciência dos adultos médios dos EUA puritanos, da China confucionista e de grande parte dos regimes totalitários contemporâneos, incluindo o Terceiro Reich e as ditaduras militares da América Latina – atualmente, em torno de 40% dos adultos do mundo encontram-se neste estágio de consciência;
- Laranja: racional-instrumental – nível de consciência alcançável já a partir dos 9 anos em sociedades avançadas, mas podendo se tornar dominante somente a partir dos 15-16 anos, sendo o nível de consciência médio dos adultos protagonistas do Iluminismo e dos trabalhadores do mercado financeiro de hoje em dia – aproximadamente 30% dos adultos de hoje em dia estão neste estágio;
- Verde: racional-pluralista – alcançável já a partir do início dos 15 anos nos países mais avançados, mas podendo tornar-se dominante apenas ao final da adolescência (20 anos), tendo se tornado dominante nos primeiros adultos há mais ou menos 150 anos e estando presente em percentuais bastante elevados nas populações adultas dos países nórdicos, Holanda e Japão, por exemplo – em termos globais, é o nível de consciência de 10% da população adulta;
- Amarelo: integrativo-sistêmico (azul-esverdeado para Wilber) – alcançável a partir dos 20-30 anos, mas em condições de assumir papel dominante na personalidade apenas após os 30-35 anos nos adultos das sociedades mais avançadas, estando presente em percentuais muito pequenos da população mundial (1% dos adultos), sendo o primeiro nível de consciência no qual é possível identificar claramente a existência dos demais níveis de consciência e as realidades e necessidades de cada um, sendo considerado o primeiro nível de “existência”, ao contrário dos anteriores, predominantemente focados na “sobrevivência”;
- Turquesa: holárquico-integral – alcançável a partir dos 30 anos, mas podendo assumir papel dominante apenas na meia-idade, sendo dominante em percentuais ínfimos da população mundial (menos de 0,1%), caracterizando o estágio máximo de desenvolvimento da consciência humana até o presente momento1.
O processo de desenvolvimento da Dinâmica da Espiral pode ser sintetizado em três grandes estágios:
i) Pré-convencional, vivenciado pelas pessoas com nível de consciência predominante entre o nível Bege e a primeira “metade” do nível azul (com pouca ou nenhuma influência da racionalidade laranja), típicos das sociedades pré-históricas, antigas e tradicionais;
ii) Convencional: Compartilhado pelas pessoas cujo “centro de gravidade” da consciência encontra-se entre a segunda “metade” do azul até o final do nível verde, equivalendo aos estágios racionais típicos das sociedades modernas e pós-modernas;
iii) Pós-convencional, referindo-se às pessoas cuja predominância de consciência encontra-se do nível amarelo em diante, que ainda não encontra seu equivalente em estruturas sociais em função do pequeno percentual de pessoas com este tipo de pensamento.
É importante notar que, sob uma perspectiva integral, o desenvolvimento da humanidade dos estágios Pré-Convencionais para os Estados Convencionais e destes para os Pós-Convencionais é o desenvolvimento do Deus imanente rumo ao Deus transcendente. Do grosseiro ao sutil. Da matéria à energia. É o Espírito conhecendo a sim mesmo! Assim, esta divisão dos níveis de consciência em macro estágios é fundamental para que se possa alcançar os objetivos deste artigo, pois as três diferentes categorias de iluminação que apresentarei correspondem exatamente aos três estágios apresentados Antes de entrarmos em cada categoria, vale dizer que cada uma delas tem a sua própria epistemologia, ou seja, seus próprios caminhos para se alcançar o estado iluminado desejado. Assim, estas metodologias para ser chegar a liberação serão apresentadas junto com as próprias categorias ontológicas.
A primeira categoria de iluminação é a Pré-Convencional. É a iluminação de que nos fala a grande maioria dos textos védicos hindus escritos na Antiguidade. É a iluminação de que nos fala Patanjali, no Yoga Sutra2. É também a iluminação descrita e vivenciada pelos pajés das tribos indígenas de todo o mundo e que está relacionada a sensação de ser “tomado por Deus” descrita por muitos místicos cristãos, judeus e mulçumanos da Antiguidade e da Idade Média. A Iluminação Pré-Convencional não é um estágio de desenvolvimento da consciência, mas está claramente relacionada a um estado de consciência de absorção no espírito. Seja no samadhi de Patanjali ou no êxtase dos místicos da antiguidade, a iluminação Pré-Convencional é alcançada quando a se consegue “cessar as atividades da mente”. Neste estado meditativo profundo, sem qualquer traço de atividade mental, mas desperta, a pessoa é tomada por uma sensação de bem-estar incondicional. Na prática, pela ótica da metafísica integral, ela entra em contato com a dimensão transcendente do Espírito. Esta experiência é interpretada por cada um de acordo com o seu nível de consciência. Para um pajé cuja consciência encontra-se no nível roxo, ele terá entrado em contato com os Deuses da Natureza. Para um adepto do candomblé ou para um oráculo da Grécia antiga, ele terá sido absorvido pela sua deidade. Para cristãos, judeus e mulçumanos fundamentalistas, eles terão conhecido ao Deus Uno todo poderoso. Se esta experiência é capaz de mudar drasticamente a vida de quem a teve (e principalmente de quem a consegue reproduzir com frequência), ela é insuficiente para levar alguém a um estado permanente de equanimidade diante das vicissitudes da vida. Por este motivo, aqueles que alcançavam estes estados buscavam o isolamento para poder reproduzi-los e manter a paz de espírito. Percebe-se, portanto, que a Iluminação Pré-Convencional só pode ser mantida de forma contínua às custas de um isolamento físico do Iluminado em relação à sociedade em que vive.
O aparecimento de Gautama, o Buda, na Índia e de Confúcio na China (e também de Jesus Cristo na Palestina), entre outros, marca um novo estágio no desenvolvimento da espiritualidade nos seres humanos. Na prática, estes grandes mestres conseguem aplicar uma lógica absolutamente racional às questões do espírito. Como primeira grande consequência, acabam dando origem a movimentos que questionam o fundamentalismo religioso nas sociedades onde vivem. À época, o nível de consciência laranja começava a ser dominante nesses poucos seres evoluídos, que utilizavam suas capacidades na investigação espiritual. Assim, surge a Iluminação Convencional. Nesta abordagem para a Iluminação, após anos de práticas reflexivas e de imersão no espírito, se auto observando e questionando a essência da realidade, a pessoa conclui conscientemente, no âmago do seu ser, que não é o seu ego ou a sua personalidade, se identificando de forma permanente com o Espírito Transcendente. É fundamental mencionar que este tipo de iluminação é inalcançável para as pessoas que operam nos estágios de consciência Pré-convencionais, pois os níveis de autorreflexão exigidos transcendem as capacidades destes estágios. De forma resumida, e preciso ter um ego sólido para transcendê-lo. Também é importante mencionar que, embora a maioria dos que alcançam a Iluminação Convencional o faça depois de longos anos de práticas focadas no alcance de profundos estados meditativos (equivalentes a Iluminação Pré-convencional), é razoavelmente frequente a Iluminação Convencional de pessoas que nunca atingiram um samadhi profundo antes. E igualmente digno de nota é o fato de que todos os que assim o fizeram, tornaram-se capazes de alcançar estes estados (samadhis) depois de atingirem esta Iluminação Convencional. Este fato evidencia uma hierarquia entre os dois tipos de iluminação, com a mais complexa englobando a mais simples.
Ao contrário da Iluminação Pré-Convencional, que implica em uma fuga física do mundo real para ser mantida, a Iluminação convencional diz respeito, ao menos aos olhos dos outros, a uma “fuga psicológica”. Para o iluminado convencional, o mundo “físico” torna-se tão irreal, que o desapego com relação às questões “mundanas” é inevitável. Para aquele que se libertou de forma Convencional, a única realidade é o Espírito Transcendente. Todo o resto é um mero “jogo” da consciência. Assim, pergunta o iluminado: “Para que alimentar toda esta ilusão?” Entretanto, o iluminado convencional interage com as outras pessoas e é capaz de manter a sua qualidade de iluminação em meio à convivência em sociedade, pois o seu nível de convencimento acerca da realidade é visceral e profundo, tendo sido obtido não durante um êxtase meditativo, mas em estado de vigília. Talvez nenhuma expressão descreva melhor a atuação do iluminado convencional do que aquela atribuída a Jesus: “No mundo, mas sem pertencer a ele”.
Vale a pena ressaltar que, muitas tradições (e seus mestres) continuam referindo-se à Iluminação Pré-Convencional como sendo a verdadeira iluminação (em lugar da Convencional). No Zen, a Iluminação Pré-Convencional é Kensho e a Iluminação Convencional é Satori. No Vedanta, Samadhi e Moksha, respectivamente. São muitos os mestres orientais (e também ocidentais) capazes de entrar em profundos estados meditativos, mas incapazes de se manterem abertos à verdade no dia a dia de suas vidas. Pode-se se dizer que “quanto mais incenso” tem a abordagem de um mestre, mais valorizada é a Iluminação Pré-Convencional em relação à Convencional. Portanto, desconfie do Mestre que lhe disser que para se iluminar você terá de se isolar do mundo para meditar até se iluminar. Os verdadeiros Mestres, que pregam a Iluminação Convencional (e não a Pré-convencional), vão querer transformar toda a sua vida em um processo de reflexão contínua. A permanência de mestres que propagam a Iluminação Pré- convencional se dá principalmente em função do fato de grande parte dos “buscadores espirituais” entrarem nessa jornada para fugir de problemas psicológicos (o famoso Spiritual Bypassing, caracterizado por Karlfried Dürckhein, John Welwood, Robert Masters, entre outros). Enquanto houver “lixo” sendo jogado para “debaixo do tapete” da consciência (nosso subconsciente), não há Iluminação convencional. Então acaba sendo muito mais glamoroso falar de sensações de leveza e visões transcendentais do que assumir totalmente a responsabilidade por suas ações. A confusão criada por estes mestres que ainda operam na Pré-história da Espiritualidade motivou, inclusive, o surgimento de um novo vocabulário para se referir a Iluminação Convencional, distinguindo-a da Iluminação Pré-convencional: Realização (Actualization) em inglês.
Decorre deste fato um outro problema, frequente com relação à Iluminação Convencional nos meios mais “espiritualizados”, que é o de tentar defini-la como algo totalmente independente da mente. A racionalidade acaba sendo definida como um vilão a serviço do ego e enfatiza-se que para se libertar do sofrimento é preciso “se livrar” da mente racional e agir de acordo com seus sentimentos, percepções e intuições. Nada mais falso! Primeiro que, sendo a iluminação convencional o nosso convencimento acerca da nossa identidade divina, é impossível que o divino consiga observar a si mesmo e se libertar, porque Ele sempre esteve liberto. Então quem assume a perspectiva divina é o ego! Sim, quem se ilumina é o ego ou a nossa personalidade! É o ego que se convence que não há porque ter medo! E então ele “relaxa” e se identifica com o Espírito! Só que este convencimento é fruto da aquisição de um conhecimento, em parte tácito e em parte explícito. Não é à toa que o Vedanta prega a contemplação das escrituras e sua lembrança nos momentos em que mais nos identificamos com o ego que sofre! Não é à toa que as várias correntes budistas ensinam a meditação Vipashyana ou Vipassana, que é uma prática analítica, apresentada como o meio para atingir a perfeita libertação, ao invés de pregar única e exclusivamente a meditação Shamata, que pode ser alcançada sem o empenho adequado das faculdades racionais. Portanto, a Iluminação convencional de que falamos é um processo que tem ativa participação da mente racional. Não é uma experiência (como é a Iluminação Pré-Convencional). É uma mudança de perspectiva que depende de aquisição de conhecimento, que é obtido por meio de um insight típico da Gestalt. E mais, graças ao ego, chegamos aos níveis convencionais de consciência. Sem o ego não teríamos condições de nos preocupar hoje com coisas como a Iluminação, uma vez que ainda estaríamos nas cavernas, se é que não teríamos sido extintos. Odiar o ego é a pior coisa que se pode fazer no caminho espiritual. Iluminação não é matar o ego. Iluminação significa se des-identificar dele! Amá-lo, sem se apegar ao mesmo!
Após a iluminação convencional, é bastante frequente que o novo iluminado se engaje em causas ligadas à melhoria das condições de vida das pessoas. Como já mencionado, ele faz isso por compaixão pelos outros. É o ideal do Bodisatva, daquele que se ilumina, mas não se “desliga” do mundo para ajudar aqueles que ainda não se iluminaram. “Enter the Market with helping hands”, diz a história do pastor Zen na versão de Fred Kofman. Por não ter de carregar “o lixo” do sofrimento ontológico, pessoas iluminadas conseguem ver a realidade como ela realmente é, concentrando suas energias em solucionar os problemas que se apresentam. Tendem a ser muito mais efetivas e produtivas do que as pessoas não iluminadas, embora tenham plena certeza que não precisam sê-lo para ganharem algo em troca e ficarem mais felizes. E isso está diretamente relacionado a Iluminação Pós-Convencional.
Acredito que em algum momento recente da história alguns iluminados (convencionais) passaram a se questionar se aquilo era realmente tudo. Será que o simples fato de se perceber uno com o eu transcendente é tudo? E então os bodisatvas acabaram descobrindo ser possível ir além da identificação com Aquele que está fora do tempo e do espaço. Como era de se esperar, a Iluminação Pós-Convencional exige que a pessoa se encontre em um estágio de desenvolvimento pós-convencional. O centro de gravidade de sua consciência tem de estar no nível amarelo (azul-esverdeado na terminologia de Wilber) ou turquesa, ou seja, a pessoa tem de ter transcendido a existência focada na sobrevivência. Ao contrário da Iluminação convencional na qual a identificação com o ego é transcendida e a pessoa se identifica com o Espírito Transcendente de forma permanente, na Iluminação Pós-convencional a pessoa se identifica com o Espírito Imanente, ou seja, ela passa a atuar no “leading edge” da “construção” de Deus3! Ao invés de se des-identificar do ego nos estágios convencionais, a maior parte dos iluminados Pós-convencionais segue identificada com seu ego até o momento em que esse ego abarque o “Nós” mais amplo possível. Ao invés de se livrar dos valores culturalmente aprendidos, o indivíduo busca adquirir (e criar) os valores mais elevados. É o caminho baseado na fullness ou completude do ego, e não na percepção de sua emptiness (ou seu vazio). Neste caso, mais do que nunca, a Iluminação envolve a mente racional. Colocando sua vida à serviço de um “nós” o mais abrangente possível e tendo claros os dons recebidos e o seu propósito de vida, o Iluminado Pós-Convencional atinge este estágio a partir do momento em que percebe estar atuando na fronteira do desenvolvimento humano, alinhado ao “desejo” do Espírito. Este processo de Iluminação “cultural” se dá quando o buscador percebe que Deus ou o Espírito PRECISAM DELE para continuar a evolução. Nesse momento de insight poderoso, o ego é transcendido e a pessoa identifica-se com o Deus Imanente. Embora parte significativa dos Iluminados Pós-Convencionais tenham antes se iluminado da maneira convencional, a maioria deles chega a esta forma de iluminação sem passar pela anterior. E, como era de se esperar, sendo a Iluminação Pós-convencional uma forma mais complexa que a Convencional, é muito fácil para aquele que se identificou com o Espírito Imanente acessar o Espírito Transcendente (Iluminação Pré-convencional) e se identificar com ele (Iluminação Convencional). Ou seja, a hierarquia baseada na complexidade continua valendo.
O que a existência desta terceira categoria de iluminação significa para nós? Creio que a principal mensagem que ela nos passa é que vivemos em uma era em que nossas preocupações começam a poder deixar de estarem focadas em nossa sobrevivência. Seria impossível pensar na emergência desta categoria de Iluminação em um mundo inseguro, onde a expectativa de vida não chega a 50 anos de idade, doenças simples matam pessoas todo o tempo e guerras sangrentas podem dizimar toda uma civilização em questão de meses. Por esta razão, as Iluminações Pré-Convencional e Convencional foram o alvo da totalidade dos buscadores espirituais até bem pouco tempo. Sim, é verdade que em muitos lugares da Terra, condições como estas continuam predominando. Mas não é à toa que nos lugares onde as condições de sobrevivência são mais “garantidas”, como parte da América do Norte, da Europa e do Japão, surjam a cada dia mais iluminados Pós-Convencionais, cujas prioridades, em grande parte, estão em garantir a melhoria das condições de sobrevivência das pessoas nos locais onde a vida ainda sofre ameaças constantes diariamente e o foco na busca da segurança do ego é a prioridade da grande maioria. Entre estes, vamos encontrar milionários aposentados engajados socialmente, membros dos Médicos Sem Fronteiras, filósofos integrais e consultores organizacionais. E você, está preparado para trilhar o caminho da Iluminação Pós-Convencional?
1 Ken Wilber e outros autores aventam o surgimento recente de mais um nível de consciência, no caso pós Turquesa, que ele denomina “Coral”.
2 Apesar da forte argumentação de iogues contemporâneos de que a Iluminação de que falava Patanjali é a mesma de Shankara e Buda, os maiores estudiosos do assunto na atualidade (com destaque para Georg Feuerstein) são categóricos em desmentir este argumento. Para Wilber, a defesa deste ponto de vista é uma explícita manifestação do Myth of the Given, que nega o aspecto imanente e desenvolvimentista do Espírito.
3 O que eu chamo de Iluminação Pós-Convencional é exatamente o estágio de desenvolvimento espiritual definido por Marc Gafni como “Your Unique Self” e por Andrew Cohen como “Evolutionary Enlightenment”
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Cordeiro. José Vicente B. M. 2016. Ontologia da Iluminação. Integral Works IW16001.
Disponível em: https://integralworks.com.br/noticias/iw16001.