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I. Por que não conseguimos fazer as mudanças que são mais importantes para nós e nossas organizações?

O final do ano e a perspectiva de início de um novo ciclo costumam nos proporcionar importantes reflexões. Em geral, é o momento em que estamos mais abertos a aceitar que não fomos tão bem em algumas atividades e, na grande maioria das vezes, decidir por mudar alguns aspectos relacionados a estes resultados não desejados. Quem nunca teve grandes e bem-intencionadas resoluções de ano novo que atire a primeira pedra! É o momento em que muitos de nós resolve começar a praticar exercícios, se alimentar melhor, ter mais tempo para a família e amigos. Entretanto, quando o ano começa para valer, a maior parte dessas decisões de mudanças acabam caindo por terra. Fazemos algo diferente um dia, uma semana e… aos poucos, voltamos a fazer o que fazíamos antes.

Nossas organizações também são anualmente pegas em ciclos muito similares que, em geral, coincidem com seus orçamentos, com a revisão dos seus planos estratégicos e com as resoluções de ano novo de seus líderes. Assim, os planos de ação e projetos estratégicos para o ano seguinte tendem a incorporar aquelas importantes mudanças que se percebe serem necessárias há tanto tempo, mas que a cada ano que passa tudo o que se consegue são, quando muito, melhorias incrementais. Observando este padrão consolidado em nossas vidas e em nossas empresas, é inevitável vir a pergunta: “Por que é tão difícil mudar?” Ou melhor: “Por que as mudanças que parecem ser justamente as mais importantes são justamente aquelas mais difíceis de serem implementadas”?

Nos últimos 22 anos trabalhei com mais de meia centena de empresas em processos de consultoria e desenvolvimento de líderes. Em comum, estes mais de cinquenta casos têm o fato de eu ter sido contratado para ajudar a promover algum tipo de mudança. Em paralelo, conduzi mais de 20 projetos de pesquisa nas áreas de estratégia, organização e liderança nos últimos 19 anos, todos eles focados direta ou indiretamente na questão da mudança organizacional. Minhas abordagens de pesquisa e de consultoria foram mudando de forma gradual ao longo desse tempo, à medida que eu percebia que as mudanças mais importantes e desejadas pelas empresas e seus líderes eram justamente aquelas mais difíceis de serem feitas. No início, minha principal preocupação era garantir o uso correto da melhor técnica, mas aos poucos fui percebendo que, na esmagadora maioria das vezes, a mudança (e consequentemente o alcance dos resultados almejados) não era uma questão de técnica, objetiva, mas algo relacionado com a forma de pensar das pessoas nas empresas.

Meus estudos e pesquisas então deram uma guinada do campo da estratégia e da organização para a área da cultura organizacional. Por volta de 2007-2008 meu principal lema em consultoria passava a ser a histórica frase de Peter Drucker: “a cultura come a estratégia no café da manhã”. De nada adiantava ser um profundo conhecedor do BSC e tantas outras ferramentas de gestão estratégica na teoria e na prática, se as grandes barreiras para a implementação das mudanças estratégicas eram intangíveis. Ao mergulhar profundamente nos estudos sobre cultura organizacional, acabei percebendo que a abordagem que melhor explicava as questões culturais e seu papel nas mudanças organizacionais era uma velha conhecida dos meus estudos de autoconhecimento: a teoria dos níveis de consciência.

Para entender os níveis de consciência, é preciso começar olhando para dentro de nós. Nossos comportamentos são a expressão tangível de tudo aquilo que ocorre em nossas mentes, influenciados não apenas por elas, mas também pelo ambiente a nossa volta. Ed Schein, o grande “guru” da cultura organizacional nos anos 90, hoje com 93 anos, definiu a cultura em uma organização como tendo três diferentes níveis, representando a relação entre eles conforme a Figura 1 abaixo, na qual a linha pontilhada separa o que acontece no mundo exterior, objetivo e tangível, do mundo interior, subjetivo e intangível. No modelo de Schein, os comportamentos reais das pessoas na empresa são denominados “artefatos”, a declaração de valores da organização e tudo aquilo que as pessoas que nela trabalham (especialmente seus líderes) dizem ser importante são os “valores expostos” e, por fim, as crenças que realmente guiam a tomada de decisão e o comportamento das pessoas na organização seriam os valores subjacentes.

Aprendi com Schein que os assessments de valores não funcionavam quando se queria determinar quais crenças estavam limitando o desempenho em uma equipe, departamento ou organização. Era preciso contrapor os artefatos com os valores expostos em workshops envolvendo o maior contingente possível de líderes e liderados da empresa. Com isso, conseguíamos identificar quais comportamentos não encontravam justificativa nos valores expostos. E então, identificávamos os valores subjacentes por trás destes comportamentos para poder alterá-los e viabilizar a mudança desejada. Mas como alterar valores? Durante algum tempo, minha solução foi introduzir novos comportamentos alinhados aos novos valores desejados (e opostos aos que se quer substituir) não apenas nos processos envolvidos na mudança desejada, mas em todos os principais processos influenciados pelos valores em questão. Como exemplo, se uma empresa costuma atrasar a entrega dos seus projetos e a complacência com uma percepção mais “elástica” do tempo é um valor compartilhado na cultura empresarial, não adiantará apenas incentivar o cumprimento do prazo de entrega pelas equipes de projetos, por exemplo, por meio de bônus quando as equipes cumprirem os prazos. Será necessário monitorar (e atrelar aos bônus) o cumprimento dos horários das reuniões na empresa, por exemplo, embora ele não aparente afetar o prazo da entrega dos projetos. Só assim evito criar uma inconsistência e permitir que os atrasos nos projetos voltem depois que os bônus sejam retirados ou que incentivos para o alcance de outras metas sejam introduzidos. Fiz uso desta abordagem por muito tempo em minhas consultorias e consegui alguns resultados excelentes, mas percebi que ela não era suficiente para promover aquelas mudanças com as quais as empresas vinham “brigando” há mais tempo! Foi neste ponto que encontrei nos níveis de consciência a explicação para estes fracassos.

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Figura 1: Três níveis de Cultura (Schein, 2009).

Se uma parte significativa dos valores que se desejava mudar parecia ceder a minha abordagem anterior, outra parte permanecia inalterada diante de todos os esforços de mudança. Foi então que entendi de forma experiencial (ou com meus “guts”) as abordagens de Graves (1970), Beck & Cowan (1996) e Kegan (1998) para mudança e a importância dos níveis de consciência para efetivá-las.

Assim, com base nestes autores, propus um novo desenho para o modelo de Schein, apresentado na Figura 2 abaixo. Reparem que agora eu explicito que tudo aquilo acima da linha pontilhada refere-se aos quadrantes do lado direito, objetivos e tangíveis, dentro da abordagem AQAL de Wilber (2000), assim como tudo que está abaixo desta linha se encontra nos quadrantes do lado esquerdo, subjetivos e intangíveis, na mesma abordagem.

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Figura 2: Quatro níveis de cultura. Fonte: Cordeiro et al. (2018).

Analisando a Figura 2, percebemos que o que Schein definia como “crenças” ou “valores subjacentes” agora aparece dividido em dois níveis. Num nível mais próximo da “superfície” encontram-se nossas crenças, que representam tudo aquilo que achamos importante, ou seja, o que valorizamos e acreditamos. Num nível ainda mais profundo, encontram-se valores que definem nossa forma de pensar, caracterizando sistemas de pensamento ou níveis de consciência. Os cientistas que estudam e estudaram o desenvolvimento da consciência humana, como Graves, Beck & Cowan, Kegan e outros, descobriram que estes valores ou formas de pensamento seguiam um certo padrão e se desenvolviam de forma sequencial em estágios ao longo da história e ao longo da vida de cada um de nós!

A Figura 3 apresenta estes estágios, caracterizando os níveis de consciência, no modelo que utilizei no Livro Liderança Integral, sendo mais próximo da abordagem de Graves e Beck & Cowan, mas também sendo influenciado por outros autores. O desenvolvimento de novos níveis de consciência ao longo da aventura humana na Terra foram (e continuam sendo) a base para a organização de sociedades cada vez mais complexas. Além disso, é o desenvolvimento de níveis de consciência mais complexos que permite a alguns adultos de hoje em dia lidar melhor com os típicos problemas do nosso mundo VUCA (ou BANI) do que outros! Não é preciso ir muito longe para perceber que estas duas vertentes estão intimamente ligadas. É o surgimento de problemas mais complexos que permite o desenvolvimento de um novo nível de consciência que, por sua vez, permitirá a criação de sistemas ainda mais complexos, que irão produzir problemas ainda mais complicados e de difícil resolução, e assim por diante!

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Figura 3: Níveis de Consciência. Fonte: Cordeiro et al. (2018), baseado em Graves (1970), Beck & Cowan (1996), Wilber (2000), Kegan (1998), Inglehart (2006), Cook-Greuter (2010).

Voltando ao meu exemplo do prazo de entrega dos projetos, vamos supor que mesmo com a implementação de bônus de desempenho ligados ao cumprimento dos prazos de entrega dos projetos, dos horários de reuniões e dos compromissos em geral, o problema permaneceu no longo prazo, após breve melhora no curto prazo. O problema volta com tudo apesar das diversas demonstrações de comprometimento dos líderes da empresa (eles próprios começando e terminando suas reuniões e cobrando e entregando seus compromissos dentro do horário), além do suporte dado pela área de desenvolvimento de pessoas na capacitação em técnicas e ferramentas de gestão de tempo e de projetos. Neste caso, estamos diante de um enorme desafio no qual parece impossível concretizar a mudança. Mas a mudança é possível de ser feita. Ela apenas pertence a uma categoria diferente de mudanças e, por isso, precisa ser abordada com ferramentas diferentes também.

Generalizando, podemos dizer que existem duas categorias distintas de mudanças, sejam elas organizacionais ou pessoais: as mudanças horizontais (também chamadas de “translativas” por Ken Wilber e “técnicas” por Kegan) e as mudanças verticais (ou “transformativas” segundo Wilber, ou ainda “adptativas” segundo Kegan). Toda mudança desejada tem, por definição, um “componente” horizontal. A questão é entender se ela poderá ser concretizada apenas por meio do aprendizado de novas técnicas, novos comportamentos e novos valores ligados aos níveis de consciência atualmente disponíveis e ativos ou se ela exigirá o desenvolvimento de um nível de consciência mais complexo. Portanto, se você ,sua equipe ou sua empresa lutam há muito tempo para implementar uma mudança específica com pouco ou quase nenhum resultado, suspeite seriamente que se está diante de uma mudança vertical, transformativa ou adaptativa! E aí vem a grande questão: como implementar uma mudança vertical, que exige o desenvolvimento de um novo nível de consciência?

Referências:

BECK, D., COWAN, C. Spiral Dynamics: Mastering Values, Leadership, and Change: Exploring the New Science of Memetics. Cambridge, Mass, USA: Blackwell Business, 1996.

CORDEIRO, J. V. B. M., LAMOGLIA, L. B., CRUZ FILHO, P. R. A. Liderança Integral: A Evolução do Ser Humano e das Organizações. Petrópolis, Rio de Janeiro, Brasil: Editora Vozes, 2019.

GRAVES, C. Levels of Existence: An Open System Theory of Values. Journal Of Humanistic Psychology, vol. 10, n.2 pp 131-152, 1970.

INGLEHART, R. ‘‘Mapping global values’’, Comparative Sociology, Vol. 5 Nos 2/3, pp. 115-136, 2006

KEGAN, R. In Over Our Heads: The Mental Demands of Modern Life. Boston: Mass, USA: Harvard University Press, 1998.

SCHEIN, E. H. The Corporate Culture Survival Guide. Boston, Mass, USA: Jossey-Bass, 2009.

WILBER, K. Integral Psychology: Consciousness, Spirit, Psychology, Therapy. Boston: Shambhala, 2000.

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José Vicente B. De Mello Cordeiro, PhD.

Founding Partner at Integral Works / Executive Consultant / Professor of Leadership & Strategy / Speaker / Coach & Mentor

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